segunda-feira, 30 de agosto de 2010

PINTO DO MONTEIRO

Severino Lourenço da Silva Pinto foi um poeta superlativo. Astuta raposa, cobra das mais venenosas. O seu poder de criação e a velocidade de raciocínio muitas vezes faziam as palavras tropeçarem umas nas outras, não pelo verso quebrado, absolutamente, mas quase engolindo sílabas, dada a ligeireza dos versos despejados em turbilhão. Autor de versos contundentes, tudo nele transpirava grandiosidade. Foi um gênio da cantoria.





Vídeos com Pinto do Monteiro:

Vídeo 1

Vídeo 2





A data de seu nascimento é incerta. Mas numa entrevista concedida a Djair de Almeida Freire, em 11/04/1983, na casa do poeta, ele revelou sua idade. Eis os principais trechos:



"Meu nome é Severino Lourenço da Silva Pinto Monteiro, nasci em 1895, a 21 de novembro, a uma da madrugada, assim dizia minha mãe. Batizei-me a primeiro de janeiro de 1896, pelo padre Manoel Ramos , na Vila de Monteiro. Nasci na rua, mas morava em Carnaubinha. Com sete anos de idade, em 1903, fui para a Fazenda Feijão. Saí de lá em 1916, 30 de junho. Meus avós eram da Itália. Quando chegaram por aqui se misturaram com sangue de português. Esse Monteiro é parente dos Brito, eu sou parente dos Brito".



Essa figura legendária, que atendia pelo nome de Pinto do Monteiro correu muito trecho pelo Brasil afora. Filho de um tropeiro com uma doméstica, Pinto experimentou muitas profissões, antes de se dedicar inteiramente à viola. A primeira foi de vaqueiro. Foi soldado de polícia, guarda de serviço contra a malária, auxiliar de enfermeiro, vendedor de cuscuz no Recife. "Depois larguei os cuscuz e ficava cantando na calçada do mercado de São José", declarara o próprio Pinto, certa vez. Recordava outra vez que, ao cantar como estreante, alguém o alertou: "Se você continuar, vai cantar de assombrar o mundo". E assombrou.



Ele tinha 25 anos quando começou a cantar. Foram seus mestres de cantoria Saturnino Mandu, de Poções (PE), Manoel Clementino, de Sumé (PB), e José de Lima em companhia de quem foi para o Recife onde cantou com muitos repentistas daquele Estado.



Em 1940, já tendo adquirido bastante experiência como cantador e mestre em cantoria, viajou para o Amazonas, onde até 1946 exerceu as funções de guarda do serviço contra a malária, ora em Porto Velho, ora em Guajaramirim, ora em Boa Vista. Quando voltou veio morar no Ceará. E em 1947 muda-se para Caruaru (PE). Depois mudou-se para Sertânea (PE), mais perto de Monteiro.



A característica marcante da cantoria de Pinto foi a naturalidade e rapidez de improviso. Cognominado "A Cascavel do Repente", Pinto era ágil, certeiro, veloz, e também venenoso e mortífero, deixando muitas vezes o oponente mudo e sem resposta. Numa ocasião, foi convidado a assistir a uma cantoria, em que um dos repentistas era Patativa, poeta ruim, cuja viola era toda enfeitada de fitas coloridas, Alguém pediu ao dono da casa que deixasse Pinto cantar. "Com a gente, não, não, só se for sozinho", defendeu-se a dupla. Pinto ficou em pé, no meio da sala, e disse:





Eu não sei como se ouve

Cantor como Patativa

Toda pronúncia é errada

Toda rima é negativa

A viola só tem fita

Mas a cantiga é merda viva".





A troca de "amabilidades" com qualquer que fosse o cantador era uma constante. Se o adversário era ruim, apertava o cerco. Se, por outra, era um do porte de Lourival Batista, a disputa fervia. Destemido, lutou contra cangaceiros, quando era da polícia. Mas, não chegou a lutar contra Lampião, pois somente quando estava no Acre, no serviço contra a malária, é que o famoso sertanejo entrou no cangaço.



A Cascavel do Monteiro esguio, estatura mediana, teve quatro mulheres. Nenhum filho, ao menos oficialmente. Aprendeu a ler e a escrever, já adulto, o que foi suficiente para aprimorar conhecimentos de história e geografia gerais, história antiga, história do Brasil. Gostava de escrever poemas e cartas aos amigos. Era um assombro de agilidade e insolência. Malcriado como sempre, acabava com o violeiro nas primeiras linhas.



Cantando em Caruaru, com Aristo José dos Santos, ouviu a estrofe que assim terminava: "moço comigo é na faca / velho comigo é no pau". Respondeu:





Mas eu sou como lacrau

Que do lixo se aproxima

Vivendo da umidade

Se alimentando do clima

Pra ver se um besta assim

Chega e bota o pé em cima.





Se provocado não tinha papas na língua nem conveniências. E o contendor era obrigado a recuar porque, com sua peculiar fertilidade de versejar, era capaz de fazer uma segunda sextilha antes que o outro se refizesse do choque da primeira resposta. Cantando uma vez com Joaquim Vitorino, este caiu na asneira de fazer referências às lapadas de cana de um primo seu. Pinto então fez esta sextilha, causando um certo desconforto no companheiro:





Você bebe até veneno!

Seu pai é bom troaqueiro,

Manoel, um ébrio afoito

Vive apanhando em Monteiro!

Quem tem uma corja desta

Não fala de cachaceiro.





A cantoria é uma manifestação muito criativa. E cantar de improviso requer muita agilidade de pensamento. E Pinto tinha tudo isso. Ele atravessou décadas cantando. Conheceu uma centena de repentistas, duelando com muitos deles. Desafiou grandes cantadores, como Lourival Batista, Dimas Batista, Pedro Amorim, Rogaciano Leite, Heleno Pinto (seu irmão), Antônio Marinho e muitos outros. "Eu assisti Pinto no auge, com Louro. Várias vezes. Nunca consegui saber qual dos dois estava na frente. No mínimo, era um empate", relembra Raimundo Patriota. E acrescenta: "Seguir o estilo de Pinto era muito difícil. Era um estilo muito pessoal. Muitos tentaram, mas não conseguiram". A verdade é que o nome de Pinto tomou-se um marco no universo da poesia improvisada do Nordeste. Diz-se que foi o maior.



Certa vez, ao ser perguntado sobre os maiores repentistas, Pinto não titubeou: "Foi o sogro e o genro" (referindo-se a Antonio Marinho e Lourival Batista). Com Job Patriota, foi mais direto: "Do meu tamanho mesmo, só Louro e Antônio Marinho. O resto é assim do seu tamanho". Quanto a Rogaciano Leite, considerado discípulo da Cascavel, Pinto coloca-o no rol dos grandes, chamando-o de "monstro".



João Furiba cantou muito com Pinto e não tinha medo de apanhar. No Festival de Violeiros de Olinda, em 1984, Furiba homenageou o mestre, presente ao acontecimento. "Seu verso hoje é açude / que abarrota a represa / rio que não perde a água / planta que possui beleza / gênio que desdobra o mundo / por conta da natureza".



Não se sabe, ao certo, com que idade Pinto morreu. Uns dizem que ele era de 1895, outros, de 1896. O próprio dizia que nasceu ora em 2 de novembro de 1896, ora em 21 de novembro de 1895. Afirma-se que morreu com mais de cem anos. Testemunhos dizem que era mais novo do que Antônio Marinho apenas dois anos. Conforme esse dado, Pinto teria morrido aos 101 anos, uma vez que Marinho é de 1887. Já velhinho, carregava um pandeiro para acompanhá-lo nos improvisos, alegando que "o volume é mais pequeno / e o pacote é mais maneiro".



Para alegria dos admiradores, Pinto deixou sua voz registrada em dois LP's — Pinto do Monteiro: Vida, Poesia e Verdade, produzido pela Fundação Joaquim Nabuco, e Pinto de Monteiro e Zé Pequeno: acelerando as asas do juízo, selo independente. Há, ainda, sua imagem e voz em inúmeras fitas de vídeo, Super-8, cassete, cinema. Deve haver, também, registro de muitos dos festivais dos quais participou, no Recife, São Paulo, João Pessoa, Fortaleza, Caruaru, Limoeiro, Petrolina, Campina Grande, entre outros.



No I Congresso de Cantadores do Recife, organizado por Rogaciano Leite, em 1948, no teatro de Santa Isabel, Pinto do Monteiro foi o grande vencedor, juntamente com o piauiense Domingos Martins Fonseca. Em dezembro de 1970, foi ao Festival de Cinema de Guarujá, com Lourival Batista, Job Patriota, Pedro Amorim, José Nunes Filho. Teve participação em filmes, entre eles, Nordeste: Cordel, Repente, Canção, dirigido por Tânia Quaresma.

Certa vez, Pinto cantando com um outro seu colega, este elogiava o Sertão, terra do velho cantador, e terminou uma sextilha assim: "Não sei medir o tamanho / dessa gente sertaneja". Pinto pega na deixa e diz, com sua maneira autêntica de sertanejo puro e de versos fáceis:





Que eu esteja em casa ou não esteja

chegue, entre e arme a rede

coma se estiver com fome

beba se estiver com sede

se quiser se balançar

empurre o pé na parede.





De outra feita, numa dessas suas grandes e ferrenhas lutas, em seu desafio o parceiro termina uma sextilha assim: "quando eu for para o outro mundo / vou lhe promover a galo". Facilmente, Pinto jogou esta sátira:





Se eu gozar desse regalo

concedido pela providência

quando eu for pra o outro mundo

havendo esta transferência

você vem como galinha

para a mesma residência.





Pinto era um verdadeiro cantador de repente. Bem diferente dos que normalmente conhecemos, que seguem uma rotina. Ele não. Respondia ao que lhe perguntam e revidava conforme lhe feriam. Numa cantoria, seu colega querendo atacá-lo, disse: "Aqui nesta cantoria / eu quero deixá-lo rouco". Pinto, com sua inesgotável idéia, responde:





Cantar com quem canta pouco

é como viajar numa pista

com um carro faltando freios

o chofer faltando a vista

e um doido gritando dentro:

"atola o pé motorista".





Em toda cantoria há o momento dos elogios, em que o cantador faz uma exaltação ao ouvinte, para agradá-lo e a paga ser recompensável. Era uma delas, o velho Pinto elogiava um sujeito e tudo fazia para agradá-lo. O camarada foi se retirando e não pagou. Pinto notou que ele tinha uma verruga no rosto e imediatamente soltou a dele, com esta sextilha:





Eu não posso confiar

em cabra que tem verruga

cachorro de boca preta

terreno que não enxuga

comida que doido enjeita

e casa que cigano aluga.





Sua viola era sagrada. Tinha um ciúme danado dela. Quando ele próprio sentiu que já estava próximo da morte, pois se encontrava muito doente, fez a seguinte recomendação à sua mulher:





Velhinha, quando eu morrer

Conserve a minha viola

Bote ela numa sacola

E deixe o rato roer

Barata dentro viver

O morcego morando nela

O cupim comento ela

E ela perdendo o valor

Só não deixe cantador

Bater mais nas cordas dela.





De 1988 até a morte, Pinto permaneceu em Monteiro. Já cego e paralítico, porém totalmente lúcido, entregou-se à morte por absoluta falta de opção, numa noite de domingo, 28 de outubro de 1990, após viver mais de nove décadas, pelo menos, e deixar seu nome inscrito nos anais da fama, como cantador dotado de muita agilidade mental e muita ironia.Seu derradeiro sonho era morrer em Pernambuco, próximo dos companheiros de viola. Não o realizou, mas garantiu que ficaria para semente, como, de fato, ficou, brotando na memória do improviso:





Quando os velhos morrem

Os que ficam cantam bem

Duda passou de Marinho

Por mim não passa ninguém.

Eu vou ficar pra semente

Prá séculos sem fim amém.


Eu vim lá do outro mundo


Pensando que este era lindo

Se tenho sido avisado

Pra aqui eu não tinha vindo

Como vim vou demorar

Só pra ver como é que findo.





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Numa cantoria, o parceiro de Pinto terminou o verso da seguinte forma:



Eis aí o Pinto Velho

Que é o rei do repente



Pinto disse:



Estou muito diferente

Do que já fui no passado

Vivendo um resto de vida

Como um macaco chumbado

Botando folha nos furos

Sem obter resultado.







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Cantando com Pinto, José Alves Sobrinho terminou uma sextilha com os seguintes versos:



Sou filho de Picuí

Minha terra é um jardim



Pinto respondeu:



Sua terra é muito ruim

Só dá quipá e urtiga

Planta milho, o milho nasce

Não cresce nem bota espiga

De legume de caroço

Só dá sarampo e bexiga.







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Josué da Cruz termina uma sextilha dizendo:



Em Campina Grande mora

Seu criado Josué



Pinto disse:



Eu sei que Campina é

Da Paraíba a estrela

Mas passei vinte e seis anos

Sem precisar conhecê-la

Inda me atrevo passar

Mas outro tanto sem vê-la.







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Cantando com Joaquim Vitorino, este terminou uma sextilha insultando Pinto:



Pinto você é tão ruim

Que com seu povo não mora



Pinto responde:



Porque daqui fui embora

É preciso que lhe prove

Fui assombrado com quinze

Com medo de dezenove

Pois nunca morei em terra

Que todo ano não chove.



VOLTE PRA RIBA







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Manoel Xudú, cantando com Pinto, terminou uma estrofe dizendo:



Por mais força que se tenha

Quem pega peso se abala



Pinto responde:



Ando com uma bengala

Com ela escoro uma perna

Pra não cair em buraco

Nem desabar em caverna

Sou o dono da bengala

Mas ela é quem me governa.







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Numa cantoria com João Furiba, este concluiu uma sextilha dizendo:



Namoro com quem vier

A mim você não empata



Pinto dá a resposta:



Tem uma mulher na Prata

Que há tempo perdeu o nome

Tem uma negra em Campina

Vive morrendo de fome

E carmelita em Sumé

Faz mais de mês que não come.



Furiba continua:



Agora encontrei na festa

Uma jovem que me adora



Pinto referindo-se a mulher, diz:



Ele namora a senhora

E outra que aparecer

A negra dele na Prata

Só tem faltado morrer

Lavando roupa de ganho

Pra vestir e pra comer.



VOLTE PRA RIBA







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Em outra cantoria, Furiba falando de Sumé, disse:



Falando do meu Sumé

Comigo você se arrasa



Pinto respondeu:



Vou construir minha casa

Na Serra da Carnaíba

De frente pra Pernambuco

De costas pra Paraíba

Só pra não ver duas coisas:

Nem Sumé nem João Furiba.







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“Antes de morrer, aos 94 anos, Pinto era visitado apenas, em sua modestíssima casa de Monteiro, por um cabo PM reformado, que ele chamava de “Cabo Edésio”. As outras visitas não eram de lá e sim de seus admiradores espalhados por todo canto do Brasil. Um dos últimos trabalhos do repentista, intitulado Porque deixei de cantar , é obra de gênio, de quem domina a arte poética até os últimos dias de sua vida.” (Inaldo Sampaio – JC caderno C 22/11/1996)

Deixei porque a idade

Já está muito avançada

A lembrança está cansada

E o som menos da metade

Perdi a felicidade

Que em moço eu possuía

Acabou-se a energia

Da máquina de fazer verso

Hoje vivo submerso

Num mar de melancolia



Minha amiga e companheira

Eu embrulhei num molambo

Pego nela por um bambo

Para tirar-lhe a poeira

Hoje não tem mais quem queira

Ir num canto me escutar

Fazer verso e gagueja

Topar no meio e no fim

Cantar feio, pouco e ruim

Será melhor não cantar.



Não foi por uma pensão

Que o governo me deu

Porque o eu do meu eu

Não me dá mais produção

Cantor sem inspiração

Tem vontade e nada faz

Afinal, sou um dos tais

Que ninguém quer assistir

Nem o povo quer ouvir

Nem eu também posso mais.





Por ocasião da morte de Pinto do Monteiro, o repentista Valdir Teles, fez este verso em homenagem ao velho cantador:



No momento em que Pinto faleceu

As violas pararam de tocar

Deus mandou o Nordeste se enlutar

Respeitando o valor do nome seu

Pernambuco ao saber entristeceu

Paraíba até hoje está doente

Só tem galo cantando atualmente

Porque Pinto mudou-se do poleiro

Com a morte de Pinto do Monteiro

Abalou-se o império do repente.



Eu comparo esta vida


à curva da letra S:

tem uma ponta que sobe

tem outra ponta que desce

e a volta que dá no meio

nem todo mundo conhece



Esta palavra saudade

conheço desde criança

saudade de amor ausente

não é saudade (é lembrança)

saudade só é saudade

quando morre a esperança



Aonde eu chego, não vi

Mal que não desapareça

Raposa que não se esconda

Bravo que não me obedeça

Letrado que não me escute

Cantor que não endoideça



Cantar com quem canta pouco

é viajar numa pista

com um carro faltando freios

o chofer faltando a vista

e um doido gritando dentro

atola o pé motorista



Minha corda não se estica

não se tora nem se enverga

da terra pro firmamento

meu pensamento se alberga

em um lugar tão distante

que lente nenhuma enxerga



Eu vou fazer uma casa

na Serra da Carnaíba

a frente pra Pernambuco

as costas pra Paraíba

só pra não ver duas coisas:

Nem Sumé, nem João Furiba



Há vários dias que ando,

Com o satanás na corcunda:

Pois, hoje, almocei na casa

Duma negra tão imunda,

Que a prensa de espremer queijo

Era as bochechas da bunda!

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