01
Revivendo
o passado de Natal,
o
ponteiro do tempo eu atrasei.
Por
um mundo de sonhos divaguei,
misturando
o fantástico e o real.
Adentrei
num enredo colossal,
como
um pássaro que voa livremente.
Resgatei
este tempo pra o presente,
para
ver o meu sonho concretizado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
02
Mais
de um século do tempo revirei,
começando
no bairro da Ribeira.
Como
ave noturna e sorrateira,
num
antigo bordel eu adentrei.
Vi
um jovem de terno e constatei
um
boêmio de um tipo diferente,
recitando
um poema comovente,
apesar
de bastante embriagado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
03
Era
o grande poeta Itajubá
que
fazia da noite o seu abrigo.
Perto
dele, sequer tinha um amigo,
só
a casta mundana estava lá.
Muito
tempo se foi de lá pra cá,
mas
unindo o elo da corrente,
num
recanto sutil de minha mente,
cada
verso pra sempre foi guardado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
04
Noutro
dia de sol límpido e desnudo,
pelo
túnel do tempo eu circulei
e,
nas ruas das virgens, eu encontrei
um
mancebo saindo para o estudo.
Esse
garbo mancebo era o Cascudo,
imortal
no passado e no presente,
sendo
mestre que reina eternamente
como
o nome maior do nosso Estado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
05
Pesquisando
a cultura popular,
foi
Cascudo, o maior entre os mortais.
Estudante
das causas informais,
dedicou
sua vida a pesquisar.
Sua
obra tratou de registrar
a
magia que vive em nossa gente.
Pesquisou
a cultura do repente,
do
batuque, das danças e do reisado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
06
Apoiou
os folguedos populares,
seu
quintal parecia um picadeiro.
Com
brincantes dançando no terreiro
sob
a lua, fazendo seus cantares,
pois,
no mestre, buscavam seus pilares,
pra
mostrar sua arte abertamente.
Neste
espaço cantou brilhantemente,
Chico
Antônio no coco improvisado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
07
Com
as asas do tempo me agarro,
e
adentro no Carneirinho de Ouro.
Neste
tão pitoresco logradouro,
eu
encontro o pintor Newton Navarro,
que
depressa fumava o seu cigarro,
tendo
à frente um copo de aguardente.
Seu
Tavares também se faz presente,
noutra
mesa tomando o seu traçado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
08
Misturado
no tempo e na razão,
visitei
noutra noite o Wander Bar.
Era
um ponto de encontro militar
e
pessoas com certa posição.
Uma
lua vertia o seu clarão
sobre
as águas do Potengi dolente.
A
quimera floriu na minha mente
e
me fez divagar mesmo acordado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
09
Me
lembrei que esse bar já foi outrora,
do
governo, a sede oficial.
Foi
o prédio mais alto de Natal,
e
se mostra imponente até agora.
Demorei
no local por mais de hora,
depois
fui caminhando e, logo à frente,
na
segunda esquina adjacente,
penetrei
por um beco mal traçado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
10
Contemplei
no recinto um marinheiro
na
calçada flertando uma pequena.
Neste
beco chamado “Quarentena”,
uma
dama catava um companheiro,
procurando
ganhar algum dinheiro,
exibindo
o seu busto saliente.
Seu
passado lhe deu como presente
carregar
este fardo de pecado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
11
Vagueando
ainda na Ribeira,
penetrando
por becos e vielas,
alcancei
a Travessa das Donzelas,
sob
a lua errante e bandoleira.
Vislumbrei
uma roda seresteira,
com
“donzelas” marcando o ambiente.
Contemplei
e, depois, segui em frente,
dando
asas ao sonho inusitado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
12
Na
Tavares de Lira, noutro dia,
encontrei
Zé Areia na calçada,
como
sempre fazendo presepada,
e
o público em volta lhe aplaudia.
Recitando
em forma de poesia,
tudo
aquilo o que vinha em sua mente.
Personagem
bastante irreverente,
pela
lei da trapaça foi marcado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
13
Zé
Areia, que foi de tudo um pouco,
foi
barbeiro, mascate e jogador.
Ardiloso
com ar de professor,
sendo
misto de gênio, vate e louco.
Declamava
que até ficava rouco
suas
trovas, movido a aguardente.
Foi
dotado da arte do repente,
sendo
bamba no verso improvisado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
14
Pra
falar deste astuto um pouco mais,
e
de suas astúcias quase insanas,
foi
jogral para as tropas americanas,
e
até visitou os seringais.
Teve
amigos nas rodas sociais,
dentre
eles até um presidente,
de
quem quis um emprego de presente,
no
entanto, esse pleito foi negado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
15
Fiz,
assim, esse ponto especial,
para
quem no humor merece um prêmio,
por
ter sido o boêmio mais boêmio
que
viveu na cidade do Natal.
Hoje
mora no campo sideral,
porém
sua herança irreverente
viverá
entre nós eternamente,
no
que foi sobre ele publicado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
16
E,
seguindo um trajeto pontual,
sobre
um tempo que foi realidade,
caminhei
para o centro da cidade,
coração
desta nossa Capital.
O
Café Grande Ponto era a central
de
boatos que mais juntava gente.
O
Café Avenida, quase em frente,
competia
com ele lado a lado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
17
Grande
Ponto eterno na memória,
para
quem seu espaço frequentou.
Até
mesmo pra quem só contemplou
sua
pompa, seu êxito e sua glória.
Grande
Ponto faz parte da história,
foi
extinto, mas vive no presente,
pois
seu nome brotou como semente,
e
ficou para sempre eternizado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a natal de antigamente.
18
Grande
Ponto de encontros memorais,
de
políticos marcando posição.
Neste
espaço, Djalma Maranhão
discutia
ideias geniais.
Tendo
à frente Cascudo e outros mais,
debatiam
a cultura abertamente
e,
surgindo um assunto diferente,
do
esporte falava João Machado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
19
Noutra
noite deserta, eu contemplava
uma
lua no céu vagando à toa.
Decidi
ir até Maria Boa,
a
boate que mais se propagava.
Pois,
se um solitário lá chegava,
logo
que adentrava o ambiente,
uma
moça surgia em sua frente,
ostentando
um casaco decotado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente
20
Numa
tarde silente de domingo,
resolvi
optar por um cinema.
Era
um filme com Giuliano Gemma,
que
na tela brilhava como Ringo.
O
enredo, de bom, não tinha um pingo,
mas
a gente curtia alegremente.
Foi
o Rex o cinema mais pungente,
e
o “Nordeste” era o mais sofisticado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
21
E,
de noite, depois que a lua veio,
vislumbrei
um cortejo colossal.
Só
então percebi que o carnaval
alcançava
também meu devaneio.
Numa
rua, brincavam no seu meio,
foliões
que pulavam intensamente,
perseguindo
a um corso à sua frente,
conduzindo
rei momo entronizado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
22
Muitos
blocos formavam esse cortejo,
como
Apaches, Chefões e Magnatas.
No
“Ressaka”, mulatos e mulatas
encantavam
com garra este festejo.
Os
passistas mostravam seu traquejo,
sobre
frevos tocados alegremente.
Seu
Raimundo, bastante irreverente,
desfilou
de mulher fantasiado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
23
E
lembrei que, na tarde desse dia,
me
entretive dançado a matinê,
que
rolou lá na sede do ABC,
e,
depois, teve um baile à fantasia.
O
América, voltado à burguesia,
tinha
o baile de máscaras mais pungente.
A
elite marcava esse ambiente,
os
plebeus tinham acesso limitado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
24
De
manhã, sob a luz do sol brilhante,
fui
à praia flertar umas donzelas.
E
usei como ponto o Caravelas,
bar
singelo que foi o mais marcante
para
a vida do solitário errante,
que
na praia buscava sutilmente
um
alguém que cruzasse seu batente
pra
voltar do passeio acompanhado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
25
E,
depois de tomar o banho de mar,
como
a minha paquera foi em vão,
embarquei
na primeira lotação
e
no Lira parei para almoçar.
Restaurante
famoso e popular,
para
quem ostentava uma patente,
onde
todo político espertamente
se
exibia pra ser cumprimentado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
26
E,
à noite, deitado em minha cama,
certas
cenas passadas recordei.
Me
lembrei que um dia frequentei
Casarão,
Ideal e Alabama.
Francesinha,
que tinha muita fama,
e
o Rosa de Ouro, mais à frente.
Logo
o Plaza surgiu na minha mente,
Acapulco
também se fez lembrado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
27
A
lembrança remota também traz,
num
coreto bem próximo da matriz,
Menininho
tocando bem feliz,
decantando
o seu caixão de gás.
Este
artista que foi o mais sagaz
sanfoneiro
nascido em nossa gente.
Tinha
estilo bastante irreverente,
só
tocava dançando o seu gingado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
28
Outro
músico burlesco veio a mim,
o
famoso artista Zé Minhoca.
Para
vê-lo tocar sua engenhoca,
fui
um dia à feira do Alecrim.
Zé
Minhoca, que teve um triste fim,
ingerindo
um copo de aguardente,
mas
tocava vertiginosamente,
apesar
de tocar embriagado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
29
Recordei
outros vultos populares,
que
viveram na nossa capital.
Paulo
Maux, nosso rei do carnaval,
foi
destaque nas terras potiguares.
Exibindo
seus dotes singulares,
se
mostrando alegre e sorridente.
Severino
Galvão, seu oponente,
era
o rei do protesto inconformado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
30
Entre
os loucos queridos da cidade,
me
lembrei do pateta Lambretinha,
de
Corisco, rezando a ladainha,
e
do tão genial Velocidade.
Mula
Manca, política de verdade,
Severina,
rainha independente.
Doutor
Choque, bastante contundente,
defendendo
com garra seu cercado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
31
“Rocas
ás Quintas”, que era na verdade
Júlia
Augusta, nascida em Caicó,
conhecida
em todo Seridó
como
mestra de grande qualidade.
Militante
política da cidade,
jornalista
bastante combatente.
Mas
viveu em Natal como indigente,
sem
ter nunca o segredo revelado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
32
Me
lembrei de Jerônimo do Sucesso,
viandante
do bairro da Ribeira
que,
com vários cordéis na algibeira,
aos
embarques dos ônibus tinha acesso.
Pra
vender mais depressa cada impresso,
declamava
os folhetos abertamente.
De
repente sumiu do ambiente,
mas
deixou no espaço o seu legado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
33
Dos
dois padres, distantes da matriz,
para
mim todos dois foram notórios.
Padre
Mário, fazendo seus casórios,
pra
zombar da política, Zé Luiz;
comentando
falou tudo que quis,
mesmo
tendo a censura pela frente.
Foi
um padre bastante diferente,
por
ter sido um padre bem casado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente.
34
Da
política, lembrei das passeatas
que
haviam na nossa capital.
Cada
qual atacando a seu rival,
destilando
promessas e bravatas.
As
figuras bastante caricatas
procuravam
engodar cada inocente.
Essa
luta foi mais irreverente
nas
disputas do verde e do encarnado.
Mergulhei
nas entranhas do passado
pra
viver a Natal de antigamente
35
Terminando
o meu sonho colossal,
que
fundiu o real e a fantasia,
escrevi
tudo em forma de poesia,
como
pétalas tiradas de um bornal.
Pra
brindar a cidade do Natal,
seus
anais, seu espaço e sua gente,
como
mimos mandados pro presente,
desse
tempo que estava engavetado.
Pra
mostrar das entranhas do passado
como
foi a Natal de antigamente.
Chico
Gabriel – 25/08/2015